Em tempos de digitalização, muitas empresas têm dúvida sobre como adaptar seu negócio à nova era e como funcionam, de fato, as etapas que envolvem o processo. Para simplificar o entendimento e a execução de projetos, a companhia japonesa Fujitsu dividiu a transformação em três fases. Executivos e professores da área comentam sobre cada uma delas
O desafio para qualquer organização que começa sua transformação digital é entender quais são as etapas que envolvem o processo e a importância de cada uma delas para atingir a maturidade da jornada digital nas empresas.
Uma das maiores empresas de tecnologia da informação do mundo, a japonesa Fujitsu, elaborou uma análise aprofundada em torno desse tema, que ajuda a compreender melhor até onde as companhias que estão passando por essa adaptação podem chegar.
De acordo com o estudo, a transformação digital pode ser dividida em três níveis: projeto digital, negócio digital e arenas digitais.
Fase 1: Projeto Digital
O primeiro degrau refere-se à aplicação de alguma tecnologia no produto ou serviço já existente e oferecido pela empresa. Como exemplo, inserir QR Code nas embalagens de um produto ou digitalizar o atendimento ao cliente, através de chats.
“Nesta etapa, a maior mudança é no mindset da companhia”, analisa Cláudio Carvajal, coordenador acadêmico da Fiap. “É, na realidade, uma transformação no modelo mental das pessoas que trabalham na organização. Quando a mentalidade inovadora não permeia, não há possibilidade de seguir nas demais fases, como aponta a Fujitsu”, explica.
A primeira fase serve também como uma espécie de termômetro para medir quais ações poderão ter mais sucesso no futuro, testar, errar e acertar, além de permitir o desenvolvimento de novas habilidades dos funcionários.
“A cultura da inovação ágil ainda sofre grande resistência nas organizações mais tradicionais. Aceitar falhas não é algo que faz parte da cultura organizacional das empresas brasileiras. E isso é algo fundamental na primeira fase, proposta pelo estudo da Fujitsu”, afirma Edson Germano, professor dos cursos de tecnologia da FIA Business School.
Os bancos tradicionais também ajudam a exemplificar essa etapa. Há alguns anos, era impossível imaginar que seria simples resolver questões como empréstimos, financiamentos ou investimentos, e, ainda, conversar com o gerente através de um chat no próprio aplicativo da instituição.
Hoje, todos esses serviços já estão na palma da mão, pois houve uma reestruturação interna nessas companhias para acompanhar as mudanças na forma de relacionamento.
E é exatamente essa mudança de comportamento e de conceito transformação digital que tem levado as empresas para a primeira fase da transformação, afinal, o mundo está mais conectado – e o Brasil não foge à regra: hoje, há mais smartphones no País do que habitantes, segundo análise da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).
André Petenussi, da Localiza: “O celular teve um papel determinante na mudança de comportamento de consumo da sociedade”. Foto: Arquivo Localiza
“O celular teve um papel determinante na mudança de comportamento de consumo da sociedade – enquanto antes o consumidor devia se adaptar às regras da empresa, hoje são elas que têm que se adequar aos hábitos do consumidor”, diz André Petenussi, CTO da Localiza.
“Aqueles que têm contato direto com seus clientes têm ainda uma urgência maior em se adaptar a um consumidor extremamente conectado e que exige cada vez mais um atendimento de qualidade, com agilidade e que atenda sua expectativa de compra. São competências fundamentais em um projeto digital.”
Fase 2: negócio digital
O segundo nível é voltado à adaptação do negócio ao cenário digital. Se a companhia for do setor varejista, por exemplo, é necessário digitalizar as redes de lojas e integrar os estoques.
Um bom exemplo é a criação de uma plataforma que comercialize o portfólio da empresa e de terceiros, para aumentar o fluxo de visitantes e garantir mais lucro, como fez o Magazine Luiza.
A marca, que nasceu no interior de São Paulo na década de 1950, iniciou a expansão de seus negócios em 1970 e não parou mais. Mas, agora, a razão de seu sucesso vai além das lojas físicas e baseia-se, sobretudo, no cenário digital, cujo mercado tem representatividade de 48% de seu faturamento.
“O Magazine Luiza pode ser considerado hoje como o grande exemplo de empresa varejista tradicional que está passando pela transformação digital com muito êxito, obtendo bons resultados financeiros”, opina Edson Germano.
Segundo o professor da FIA, uma das “sacadas” da varejista foi criar, em 2014, o Luiza Labs, um braço focado no desenvolvimento de produtos e soluções digitais, com toda a cultura de uma startup, com adoção de metodologias ágeis e incentivo à inovação.
“O CEO da companhia, Frederico Trajano, percebeu que uma das grandes dificuldades que as empresas tradicionais enfrentam é a digitalização de suas operações e, para resolver esse problema, ele criou uma startup para a própria marca”, diz.
Assim, para Germano, o Magazine Luiza vem conseguindo digitalizar sua operação com grande eficiência e agilidade, conectando digitalmente em tempo real sua operação de vendas com montadores, transportadoras, parceiros comerciais e empresas do setor financeiro, focando sempre em melhorar a experiência do comprador.
Desde 2014, a companhia intensificou as estratégias para atrair os consumidores para o cenário digital, apostou na multicanalidade e colocou o cliente no centro de toda sua transformação. Os números, por si só, apresentam o sucesso de sua inovação
Quando ainda estava nos primeiros passos de sua transformação, o preço de sua ação chegou a custar R$ 0,16; agora, em dezembro de 2019, saltou para R$ 44,37. À época, o mercado avaliava a varejista em R$ 200 milhões – hoje, quatro anos depois, ela vale R$ 72 bilhões.
O objetivo da empresa de Frederico Trajano, agora, é digitalizar outros setores e entrar para a categoria de “super app”, o que a coloca na terceira fase da Fujitsu. Sendo assim, se os planos da varejista se concretizarem, ela terá passado por todas as etapas em pouco mais de seis anos.
No entanto, para André Petenussi, cada negócio tem uma necessidade específica de digitalização, que demandará um tempo diferente e, portanto, é difícil estimar um número para passar de cada fase.
“Não se pode generalizar nem padronizar a prática de transformação digital. Cada organização tem sua especificidade e processos próprios de digitalização de seus serviços e negócios, sem necessariamente passar pelas arenas digitais, por exemplo, seja por uma decisão estratégica de não abrir sua tecnologia ou por optar em investir no crescimento de sua atividade de maior geração de valor”, acrescenta.
Fase 3: arenas digitais
O terceiro nível da Fujitsu, batizado de arenas digitais, é quando um negócio já está consolidado e pode ser replicado para outras companhias e setores. Na prática, é quando já se tem um ativo, uma base grande de usuários e domínio da plataforma, e é possível unir forças com outras empresas, a fim de criar um ecossistema único. Caso da americana Amazon e sua plataforma, a AWS.
Após criar inúmeras competências digitais e acumular um grande número de clientes em sua base, a companhia de Jeff Bezos começou a oferecer suas competências a outros negócios. Pequenas e médias empresas, sem a mesma capacidade financeira e tecnológica, passaram então a utilizar a plataforma e novos serviços. Agora, os clientes da Amazon são outras empresas e não apenas os clientes finais.
“O caso da AWS é emblemático. A Amazon criou a própria infraestrutura de servidores para aguentar o volume de seu e-commerce e, depois, vislumbrou a possibilidade de vender como serviço a tecnologia que criou”, diz Gustavo Goldenberg, CPO da Vuxx.
“Porém, existem milhares de outros serviços que surgiram de problemas resolvidos internamente em empresas. Veja, por exemplo, o sistema do Google Maps que pode ser consumido via APIs para uma série de outros serviços que precisam de informações de geolocalização ou, até mesmo, metodologias de gestão como o Kanban, criado pela Toyota, e hoje adaptado ao mundo de desenvolvimento de software e gestão de projetos como um todo”, analisa.
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O executivo também cita um exemplo na Vuxx. “Criamos um poderoso roteirizador para uso interno, mas que já pode ser utilizado por alguns clientes como serviço depois que reconhecemos essa necessidade nos nossos clientes atuais. Um problema interno virou uma nova linha de receita para a empresa”.
Para ele, será comum companhias mais avançadas digitalmente permitirem que outras utilizem seus serviços e produtos. “Claro que ainda é difícil operar com paredes de vidro. Tudo vai depender das análises de mercado e fomento competitivo com os serviços fornecidos”, comenta.
Por que sair da primeira fase é tão difícil?
Muitos projetos que querem atingir a maturidade digital, no entanto, não passam do primeiro nível da análise da Fujitsu, sendo a transição para a segunda etapa a mais difícil. Depois que o negócio se consolida, fica mais fácil migrar para a terceira fase, quando atinge-se o ápice da transformação digital.
“No Brasil, é difícil dizer o motivo exato de muitas empresas não saírem da primeira fase no processo de transformação digital, mas, de forma ampla, acredito que muitas companhias no País ainda tratam a inovação e o desenvolvimento de tecnologia como um processo com começo, meio e fim, budget e deadlines definidos. Tudo isso é o que mata a inovação justamente na primeira etapa, onde é preciso mais liberdade criativa e a chance para errar, aprender e melhorar” opina Goldenberg.
Ele continua. “Aceitar que o erro e o fracasso fazem parte do processo de inovação e desenvolvimento de tecnologia aplicada são cruciais na mentalidade dos líderes empresariais brasileiros, se quisermos mudar esse cenário. Em comparação, os Estados Unidos são uma nação construída nas costas do empreendedorismo e na livre iniciativa. O fracasso faz parte do processo empreendedor como um todo e essa cultura de fracassar, aprender com os erros e tentar de novo permeou a forma como se desenvolve tecnologia aplicada no país.”
Para Miguel Alcântara, diretor de TI da Movida, o motivo está, de fato, na mentalidade dos empresários, que visam apenas defender sua posição no mercado presente, sem se preparar assertivamente para o futuro.
“Isso faz com que, no máximo, automatizem alguns passos do processo atual. O poder de captar investimentos e saber reinvesti-los pensando na sua futura posição é que faz com que avancem nos três níveis. Também não haverá evolução para quem acha que o futuro será uma pequena variação do que já existe, não experimentando novos caminhos por achar que já o fazem”, afirma. Para chegar ao topo, não basta dar o primeiro passo: é necessário não parar de caminhar. E a sua empresa, como está caminhando na estrada da transformação?