Fundador da Totvs relembra o início de sua empresa, comenta sobre as novas tecnologias e, ainda, sobre a criação de um family office com foco em startups

A história de Laércio Cosentino, um dos ícones do mercado de tecnologia no Brasil, se assemelha às de muitos executivos que chegaram ao topo com suas ideias disruptivas e poucos recursos financeiros. 

Aos 23 anos e trabalhando em uma empresa de processamento de dados, Cosentino leu uma entrevista do americano Bill Gates na qual afirmava que “um dia, todas as casas teriam um computador”. Tal afirmação lhe deu a dimensão do setor de TI no médio e longo prazos. 

E foi imaginando um futuro rodeado por computadores e outras tecnologias, que, ali, naquele presente momento, veio o insight que mudaria os rumos de sua vida e o mercado de TI no Brasil. O pouco investimento que dispunha à época –  US$ 6 mil – não foi empecilho para frear o ímpeto de empreender.

Pouco tempo depois, nascia a Microsiga, uma empresa de software empresarial, que se transformou na Totvs (pronuncia-se tótus), a maior companhia brasileira de tecnologia, presente em 41 países e com um faturamento de R$ 2,5 bilhões. 

“Olhando para trás, posso afirmar que tudo depende da capacidade de desenvolver uma ideia e isso vai além das cifras e investimentos iniciais”, diz Laércio Cosentino.

“No mundo todo, temos vários exemplos de grandes empresas que nasceram de uma boa ideia, um computador e conhecimento para desenvolver algo. Quando falamos em tecnologia da informação, a capacidade de criar é mais importante do que altos investimentos iniciais. É possível, sim, traduzir novas ideias em boas soluções e produtos.”

Startups em foco e avanço da tecnologia

Ao longo de sua trajetória, Cosentino adquiriu mais de 40 empresas para transformar a Totvs na potência que é hoje. Desde que deixou a presidência da companhia, em 2018, o executivo tem aproveitado sua expertise em fusões e aquisições para continuar investindo, mas, agora, em startups.

Para isso, criou um family office com foco em empresas iniciantes do setores financeiro, saúde e educação. Todas, é claro, com DNA digital.  

“Como um dos sócios-fundadores de um multi family office, que conta com outras três famílias de perfis diferentes, investimos em oito empresas e nem todos estão juntos em todas elas. Damos apoio, ajudamos na gestão, colaboramos com o desenvolvimento e acompanhamento do plano de negócio de cada uma das empresas investidas”, afirma.

 

Com o crescimento da digitalização em todos os setores da economia, o mercado de tecnologia está cada vez mais aquecido. De acordo com a 10ª Edição do Estudo Setorial sobre o Mercado de Distribuição de TIC e do Censo das Revendas, realizado pela IT Data, os distribuidores de tecnologia no País estimam faturar R$ 28 bilhões este ano, configurando uma alta de 13,4% sobre o faturamento de 2020

Laércio Cosentino: “Quando falamos em tecnologia da informação, a capacidade de criar é mais importante do que altos investimentos iniciais”. Foto: divulgação

Para Cosentino, esse é um avanço natural, uma vez que o digital está dentro de todas as companhias que querem atingir suas metas e prosperar. 

“A empresa que não se digitalizar não será mais competitiva. É preciso olhar para a sociedade e ver como ela tem ditado novos comportamentos e formas de consumo, totalmente ligados à tecnologia.” 

A seguir, Laércio Cosentino relembra o início da Totvs, comenta sobre a digitalização no Brasil e o potencial de tecnologias como a inteligência artificial: 

CWS Insights: Como tem sido a rotina desde que saiu do comando da Totvs?  

Laércio Cosentino: A minha saída da Totvs foi fruto de um planejamento prévio, por isso não houve uma grande mudança na minha rotina. Afinal, eu já vinha trabalhando no processo e, ao longo dos últimos anos, fui fortalecendo outros projetos adicionais à própria Totvs. A partir do momento que abri mais espaço em minha agenda, consegui dar vazão a outras iniciativas que até então estavam represadas pelo meu cargo executivo. A maior mudança foi ajustar as prioridades em minhas atividades diárias.  

CWS Insights: O sr. tem investido em diversas empresas, inclusive, do segmento de bebidas, como a BR-ME. Como surgiu a ideia de uma plataforma para estimular o consumo de produtos nacionais?

Laércio Cosentino: Em uma conversa descontraída com o Alexandre Fialho, que assim como eu, também é um grande defensor do Brasil, chegamos à conclusão de que precisávamos apoiar os bons empreendedores brasileiros e era hora de levantar a bandeira da brasilidade. 

Então, juntos com o Guga Valente, Rodrigo Vella e Caio David, decidimos investir na distribuição de produtos nacionais de alta qualidade, que são fora da curva e que os brasileiros precisam experimentar. Começamos com vinhos e cafés, já estamos também com destilados, cachaças e ampliando para outros serviços na área da saúde, com os testes de DNA. 

Todos 100% brasileiros. A ideia foi criar um lugar para reunir esses empreendedores e ajudar na divulgação e comércio de seus produtos e serviços de alta qualidade agregada. Seremos, cada vez mais, um marketplace de produtos que as pessoas precisam conhecer, experimentar e comparar com outros produtos do mundo.  

Para isso, contamos com um time de especialistas para cada categoria que fazem a curadoria e avaliação de cada produto de forma segura. Nosso objetivo é contribuir e fortalecer o mercado desses excelentes empreendedores. É preciso sentir orgulho do que produzimos no país.  

CWS Insights: A Totvs foi vanguarda no desenvolvimento de softwares no Brasil. Hoje, olhando para trás, como enxerga a trajetória da empresa? Faria algo diferente?  

Laércio Cosentino: Nossa trajetória de software no Brasil começou com a Microsiga. A partir dela, criamos e treinamos o mercado. Fomos pioneiros não só no sentido de desenvolver a tecnologia, baseada em computadores pessoais e internet, mas em doutrinar o mercado, formar pessoas e fortalecer nossos clientes e disseminar o conhecimento. 

Sempre tivemos muita determinação para fazer o melhor e desenvolver no país algo que fosse de muita qualidade para, com isso, poder crescer.  

Sobre olhar para trás, acredito que nunca podemos condenar o passado com o ponto de vista e experiência que temos hoje. Posso afirmar que fizemos sempre o que era preciso fazer, na época em que foi feito.  

CWS Insights: O sr. acredita que a tecnologia, de uma forma geral, vai se tornar cada vez mais acessível?  

Laércio Cosentino: Sim, hoje a tecnologia já é mais acessível ao maior número de pessoas. Precisamos basicamente de um device, um smartphone e alguns softwares para utilizar ou desenvolver uma tecnologia. É preciso ressaltar que o uso do digital foi uma opção da sociedade, que mudou seu comportamento. 

Antes, desejava comprar um determinado produto ou bem, hoje aposta no conceito de uso. Usamos muitos produtos e serviços que trocamos por uso de dados. Fornecemos informações para usar determinados produtos, e isso possibilita potencializar esse acesso.  

Se em gerações passadas não queríamos disponibilizar nossos dados, hoje os jovens são mais abertos para trocar dados por benefícios e está tudo certo. São os dados, esse tráfego de informações, que possibilita às empresas a fazerem suas rotas comerciais, antecipar o que será consumido, incluindo serviços e entregas. Criou-se uma coparticipação entre empresas e sociedade.  

CWS Insights: Qual ou quais tecnologias tendem revolucionar o mercado brasileiro? 

Laércio Cosentino: Não existe uma só e não tem mais nada que esteja sendo desenvolvido em tecnologia e comunicação que não seja global. O mundo não tem mais barreiras. As tecnologias podem ser mais ou menos caras, mas estão disponíveis. 

Já é possível ter acesso ao 5G, monitorar uma plantação no campo, ter em mãos toda a rota de deslocamento pela cidade. O que permitirá ou não a evolução de todas essas tecnologias existentes e de novas é a infraestrutura. O Brasil precisa ser mais aberto, temos necessidade de reformas tributárias, administrativas e trabalhistas, pois não competimos mais por tecnologia e, sim, por mão de obra. 

Temos que ter as mesmas condições de outros países para gerar valor, ascensão social e conhecimento. É preciso revolucionar o mercado brasileiro, ajustar legislações, capacitar pessoas e buscar um ambiente mais competitivo para sermos relevantes na engrenagem global.  

CWS Insights: Poderemos, em breve, usufruir de todos os benefícios de tecnologias como inteligência artificial? Qual é seu potencial?

Laércio Cosentino: Gigante. Mas para que esse potencial seja viável é preciso destacar a importância de gerar, capturar, armazenar e gerir dados. Toda informação que fornecemos precisa retornar como benefícios, como inclusão digital.  

Quando olhamos para a China, em seu projeto de se tornar a maior potência mundial em dados e inteligência artificial até 2030, vemos que o país está indo para o caminho certo. Já estive na China e pude ver vários exemplos de como eles colocam metas e seguem em frente para atingi-las. A inteligência artificial baseada em dados tem um crescimento absurdo em todo o mundo.  

CWS Insights: Tratando-se do mercado de pagamentos, como as novas tecnologias vão transformar ainda mais este setor?  

Laércio Cosentino: A inteligência artificial já está sendo a grande ferramenta de mudanças nesse mercado. Os modelos de pagamentos, que já passaram por escambo, moedas, cédulas, agora bitcoins, criptomoedas, carteiras digitais e PIX, são só formas. 

Hoje, um device já substitui tudo isso. A grande transformação desse mercado é usar a tecnologia para converter qualquer moeda ou crédito em uma transação financeira. Em um futuro próximo não importará em qual instituição financeira estarão suas “moedas”. 

No entanto, tudo depende de regulamentações e isso não é simples e leva tempo. A tecnologia avança mais rápido que as regulamentações.  

CWS Insights: Como o sr. analisa o setor de logística no Brasil? Como será possível eliminar gargalos?  

Laércio Cosentino: São vários os gargalos que passam por necessidade de reformas tributária, trabalhista e capacitação de profissionais. Temos que ter uma reforma Brasil, afinal não adianta ter investimentos em digitalização de mercados e setores se muitos processos ainda são feitos de forma analógica e burocrática. 

A logística acaba sendo a última fase. O Brasil é um país continental. A tecnologia e comunicação, por exemplo, já permitem que pessoas afastadas de grandes centros urbanos comprem online, mas ainda temos problema com entrega que esbarra nas dificuldades logísticas. O Brasil precisa incentivar a concorrência para iniciativas privadas com o objetivo de atrair grandes investimentos para melhorar esses gargalos.  

CWS Insights: Em sua opinião, qual será o maior legado da pandemia? 

Laércio Cosentino: O grande legado que a pandemia deixa é o de afirmar que o ser humano é totalmente adaptável. Nada se muda, tudo se ajusta a uma nova realidade. Vimos que é possível criar uma vacina em um ano, mudar todo um processo de trabalho em pouco tempo, entre tantos ajustes que fizemos. A pandemia reforçou que o ser humano é capaz de se adaptar a qualquer realidade.