Ao implementar projetos de Transformação Digital tão somente a partir de sistemas tradicionais, que olham para dentro, as empresas arriscam milhões de dólares e sua reputação
O “cliente no centro de tudo”. Com este lema, Jeff Bezos já em 1999 explicava que a Amazon tinha como missão não ser apenas mais uma empresa centrada no cliente (customer centricity), mas sim ser a número um nesta missão. Fato é que vinte e dois anos após essa definição e uma receita de vendas 77 mil vezes maior, a missão permanece a mesma.
A evolução tecnológica: dos sistemas de dados para a jornada do consumidor
Nos anos 70, as empresas passaram a demandar um sistema (ou um conjunto de sistemas) que trocassem informações entre si para o controle de planejamento de requisição de materiais. Este sistema, à época inovador, foi chamado de MRP (Material Requirement Planning). Com o passar do tempo, foi necessário gerenciar também a manufatura, a logística, mão de obra, maquinário, custos, etc. Assim o MRP evoluiu para o MRP II (Manufacturing Resource Planning).
Já nos anos 80, surgiu a necessidade de outros controles, tais como: finanças, compras, vendas, recursos humanos, etc. Assim, agregando novos módulos ao MRP II, foi criado o sistema ERP (Enterprise Resource Planning), sendo estes sistemas muito procurados e utilizados a partir da década de 90.
À época, as empresas correram para padronizar seus processos de negócios sob o uso destes sistemas. A proposta de valor era (e continua sendo): centralização empresarial, padronização e integração de processos de negócios internos e externos, economia de custos e, apesar de suas arquiteturas monolíticas, alguma flexibilidade (em comparação ao caos que existia antes).
Passados 50 anos, o que se observa é que até hoje esse conceito de ERP segue como sendo o modelo padrão. O conceito de ERP, sistema integrado de gestão empresarial, foi desenvolvido olhando para os processos e para dentro das empresas, pensado em como atender às integrações dos diversos processos internos.
Olhando a jornada de compra, o consumidor, portanto, precisa ajustar sua jornada aos módulos pré-definidos destes sistemas. A qualidade percebida dessa jornada (SLA ou nível de serviço) passa ser a consequência (output) do processo comercial e não sua causa (input).
Da era industrial para a era digital
O customer centricity não é apenas um conceito marketing. Ele é a nova maneira como a indústria organiza a cadeia produtiva. É a revolução digital em si, o que determina a evolução das ferramentas disponíveis (roadmap) para a indústria 4.0.
A organização industrial, antes era definida pelo mundo da oferta. A cadeia produtiva, uma vez organizada, desenvolvia, fabricava e distribuía seus produtos. Diante da necessidade, o consumidor então se dirigia aos canais e consumia o que estava disponível. Isso valia para todas as indústrias: do entretenimento da tv aos fabricantes de papel higiênico.
Ao longo das décadas, evoluímos deste mundo da oferta para o mundo da demanda. Atualmente, é a necessidade do consumidor que determina como a cadeia produtiva se organiza, produz e distribui. Por isso que a indústria 4.0 e o customer centricity surgem e evoluem juntos.
O sistema integrado ERP foi concebido e implementado para atender às necessidades da era industrial. Na verdade, sem ele não seria possível os ganhos de eficiência e o grande salto produtivo da indústria no século XX.
Por outro lado, o ERP não evoluiu na mesma velocidade da indústria em que máquinas tornam-se inteligentes ou são substituídas por robôs. Também não evoluíram à reboque do Data Science e das tecnologias em nuvem, que hoje oferecem soluções muito mais dinâmicas, customizáveis e de baixo custo a empresas de qualquer porte.
Ou seja, estes sistemas continuam a ter como princípio ser um grande banco de dados, adaptando-se modularmente às necessidades das empresas. Mesmo que os grandes provedores de sistemas ERP corram para se adaptar às soluções de nuvem, sua essência ainda está umbilicalmente liga à era industrial.
Seus desenvolvedores, as empresas de consultoria e de serviços relacionados foram formados e ainda vivem a cultura da era industrial, por isso a dificuldade em pensar e implementar soluções voltadas ao customer centricity.
Saiba Mais
As empresas que atravessam o processo de transformação digital parecem já ter sentido em algum momento este conflito. Suas equipes de UX (user experience) fazem todo o trabalho de entender as diferentes personas e as características da jornada de compra. Vão à campo, estudam o cliente e modelam seus projetos.
A equipe de tecnologia, por sua vez, responde com investimentos em desenvolvimento e adaptações de suas funcionalidades (features), todo este processo obedecendo à jornada de compra esperada pelo cliente.
No entanto, ao implementarem a solução, surge o conflito com os processos internos da empresa: a maneira como as áreas se relacionam não é capaz de atender à jornada esperada pelo cliente. A empresa obedece ao desenho do ERP, portanto a solução digital pensada, também o deve, ainda que desvirtue a proposta original do nível de serviço esperado pelo cliente.
Empresas Digitais Nativas vs. Migrantes Digitais
Atualmente, todas as cinco maiores empresas em valor de mercado do mundo são o que se denomina de “Nativas Digitais”. Em 2006, era apenas uma. Naturalmente, com tamanha criação de valor para seus acionistas, as empresas tradicionalmente estabelecidas olham para estes resultados e buscam replicar oportunidades digitais em seus segmentos.
Assim, estas empresas partem em busca de projetos de “Transformação Digital”, perfazendo assim o conjunto das empresas chamadas de “Migrantes Digitais”. No entanto, os desafios da era digital impõe à estas empresas diversas escolhas, sendo o primeiro deles o novo desenho de suas organizações.
Essas opções de desenho são, na verdade, uma forma de incorporar a estratégia digital ao modelo organizacional e começar a impulsionar uma mudança cultural e comportamental no longo prazo.
Estas escolhas são feitas baseadas nos modelos de gestão das nativas digitais, feitas portanto na expectativa de que vão gerar melhorias operacionais e conquistar a inovação disruptiva pela qual as nativas digitais são reconhecidas e assim valorizadas.
O valor está na “obsessão com o cliente”
Quando uma empresa tradicional resolve se digitalizar, precisa ter em mente que se propor a ser uma Migrante Digital, baseada unicamente em seus recursos, traz consigo diversas dificuldades. O lema de Jeff Bezos e sua obsessão pelo cliente é algo simples de ser assimilado, porém difícil de ser implementado.
Muitas destas empresas subestimam os desafios que esta missão impõe, mal avaliando a real dimensão de mudança que é necessária em suas estruturas para esta transformação. A sociedade industrial evoluiu do sistema produtivo de oferta para o de demanda.
A cadeia produtiva também evoluiu, propiciando que muitas startups e novas empresas surgissem capturando as oportunidades de ineficiência do modelo tradicional e se tornando assim algumas das empresas mais valiosas do mundo. Porém, o que é difícil de observar é que valor está não somente no tamanho das oportunidades, mas também em como estas empresas nativas digitais tiveram que aprender a capturá-las.
Sua trajetória e o modo de pensar de suas equipes faz parte do valor de mercado e resultados que apresentam. As empresas tradicionais que buscam se digitalizar de forma eficiente sabem o tamanho do desafio que isso impõe e buscam junto às empresas nativas digitais a solução para suas oportunidades.
Entendem que alterações incrementais em seus processos e softwares já existentes não são capazes de promover a mudança, uma vez que sempre trabalhou olhando para dentro e o customer centricity é um conceito muitas vezes conflitante com os sistemas já estabelecidos. E como prova a Amazon, é justamente aí que reside a criação de valor.