Em entrevista à CWS Insights, Morgan Doyle, representante do BID no Brasil, comenta sobre a linha de crédito de US$ 1 bilhão para financiar projetos digitais e por que a digitalização é o principal caminho de crescimento para o País

Em um período no qual o digital tem viabilizado o acesso a diversos serviços e produtos, o Brasil irá contar com um incentivo de peso para tirar do papel mais projetos disruptivos. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou uma linha de crédito de US$ 1 bilhão que será destinada à transformação digital no País.

Estruturado em quatro eixos – incluindo, mas não limitando-se aos serviços públicos -, o programa “Brasil Mais Digital” contemplará infraestrutura digital através de ações para aperfeiçoar a conectividade no País; economia digital, abarcando também o setor produtivo privado; governo digital e, como nomearam, “fatores habilitantes”, que é o estímulo à inclusão digital e à capacitação da mão de obra.

“O objetivo da linha de crédito é apoiar o Brasil em seus esforços de transformação digital. Pela sua abrangência, portanto, os benefícios não se limitarão aos serviços públicos e poderão ser experimentados pelos cidadãos brasileiros que, como mostrou uma pesquisa nossa recente, estão adaptados ao mundo digital e querem cada vez mais serviços oferecidos dessa maneira”, diz Morgan Doyle, representante do BID no Brasil.

De acordo com o porta-voz, a iniciativa está em linha com a chamada Visão 2025, uma estratégia que visa reconduzir a região ao crescimento. “Nossos especialistas identificaram a transformação digital como um dos pilares para acelerar a recuperação no pós-pandemia”, acrescenta.

“Digitalização não é uma escolha”

Morgan Doyle chama a atenção para a crise do coronavírus, que acelerou a necessidade das empresas se digitalizarem.

“Com a pandemia, percebemos que a digitalização não é uma escolha, é uma necessidade: se não fosse, boa parte das atividades profissionais e até sociais teriam sido interrompidas. E sabemos que essa é uma tendência que perdurará mesmo quando as medidas de distanciamento social puderem ser abrandadas”, ressalta.

Segundo o executivo, um benefício imediato – e primordial – da digitalização é a sobrevivência. “Os setores público e privado precisarão construir bases sólidas na digitalização para continuarem sendo competitivos e viáveis.”

Mas há, também, ganho de eficiência. “No Ceará, que é o primeiro estado a obter crédito dessa linha, o projeto financiado tem como objetivo modernizar o Judiciário. Serão US$ 28 milhões investidos em itens como automatização de atividades que ainda são feitas manualmente, integração de processos em nuvem e outros usos de tecnologia que, no fim, tornarão o Judiciário cearense mais rápido e os cidadãos mais satisfeitos”, afirma.

Leia a entrevista com Morgan Doyle, porta-voz do BID no Brasil:

CWS Insights: Como será feito o repasse da linha de crédito?

Morgan Doyle: Os recursos dessa linha de crédito são canalizados por três frentes: por meio do próprio governo federal, que pode utilizar os recursos para financiar programas alinhados com os objetivos mencionados; com empréstimos a governos estaduais e municipais que tenham projetos condizentes com a linha e cumpram os requisitos fiscais para obtenção de crédito; e para bancos de desenvolvimento – é por meio dessas instituições que o BID faz seus recursos chegarem até a ponta.

CWS Insights: As micro, pequenas e médias empresas terão acesso ao programa?

Morgan Doyle: O setor de MPMEs é um dos prioritários. Nesta linha de crédito especificamente, o apoio à digitalização das PMEs se dará por meio de financiamento de iniciativas que promovam novos modelos de negócio, aperfeiçoamento de regulação para a adoção de novas tecnologias, parcerias entre setor produtivo, governos e universidade. Ou seja, o foco aqui não é o financiamento das PMEs em si, mas a criação de condições para que elas possam cada vez mais se digitalizar.

CWS Insights: Quais setores serão os grandes beneficiados?

Morgan Doyle: Na verdade, não falamos em segmentos prioritários, mas em eixos que orientam a linha de crédito – infraestrutura digital, economia digital, governo digital e fatores habilitantes. É uma abordagem multissetorial e que contempla muitos segmentos.

No agronegócio, por exemplo, o benefício pode ser por meio da melhoria da conectividade no campo. Um estudo que fizemos em parceria com Microsoft e o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura em 2020 mostrou que, ainda, há um hiato considerável de conectividade nas zonas rurais em comparação com as zonas urbanas.

O Brasil se sai melhor do que os países vizinhos neste quesito, mas ainda assim há uma lacuna de acesso à internet rápida no campo. Ao superarmos esse desnível, abriremos portas para mais uso de tecnologia rural, gestão das atividades agrícolas em tempo real e outros benefícios para um setor que é primordial não só para a balança comercial do Brasil, mas para a alimentação do mundo todo. Esperamos poder contribuir para avançar nesse sentido.

Morgan Doyle, do BID: “Os setores público e privado precisarão construir bases sólidas na digitalização para continuarem sendo competitivos e viáveis.” Foto: divulgação

CWS Insights: Qual será o potencial de impacto e ganho social com a digitalização?

Morgan Doyle: Em um país com as dimensões e a heterogeneidade do Brasil, a digitalização tem potencial ainda maior. Com conectividade adequada e serviços estruturados, o poder público pode atender cada vez mais e melhor os cidadãos que vivem longe dos grandes centros. E mais: pode levar até eles serviços de ponta – como atendimentos de saúde complexos por meio da telemedicina.

CWS Insights: De que maneira o programa poderá contribuir com a implementação da rede 5G?

Morgan Doyle: Ajudar o país a melhorar a cobertura e a qualidade de conectividade digital é um dos objetivos dessa linha de crédito, e o 5G se insere nesse contexto. Acompanhamos a evolução desse debate de perto aqui no Brasil e estamos confiantes de que o país tirará proveito das possibilidades dessa tecnologia.

Voltando ao exemplo da telemedicina, sabemos, por exemplo, que o 5G nos deixará mais próximos de ter, por exemplo, cirurgias conduzidas à distância, por meio de robôs, chefiadas por médicos que podem estar em qualquer parte do Brasil. Isso tudo será possível com conexões mais estáveis, com menor latência e maior velocidade, como é o caso do 5G.

CWS Insights: Qual é a expectativa de retorno do investimento do BID?

Morgan Doyle: Não temos um número fechado, até por se tratar de uma linha de crédito multissetorial, que abarcará projetos muito complexos, muito diferentes e multifatoriais, com impactos que muitas vezes vão além de dados quantitativos – como a satisfação de moradores de zonas que passem a ter acesso, por exemplo, a serviços públicos, notícias e entretenimento com internet de melhor qualidade. Quanto ao prazo, os empréstimos do BID provenientes da linha de crédito têm prazo de amortização de 25 anos e período de carência de cinco anos.

CWS Insights: O País, de fato, está preparado culturalmente para essa transformação digital?

Morgan Doyle: Sim. E esta é uma notícia bastante positiva: o brasileiro quer e está apto para o mundo digital. No ano passado, durante a pandemia, o BID realizou a maior pesquisa de satisfação de usuários com serviços públicos digitais já feita na América Latina e Caribe.

Foram ouvidos mais de 13 mil brasileiros. E os resultados foram surpreendentes: 86% dos entrevistados se disseram bem adaptados ao mundo digital. A pesquisa mostra também 95% das pessoas declarando ter acesso à internet por meio do telefone celular. São níveis bastante elevados.

É verdade que há alguns segmentos que merecem atenção especial – como os maiores de 60 anos e cidadãos com menor escolaridade. Ao destacar esses dados, inclusive, queremos ajudar o país a focar seus esforços onde é mais preciso para que, em conjunto, todos os cidadãos possam usufruir dos benefícios da transformação digital.

CWS Insights: Quais serão os ganhos financeiros e de produtividade para o Brasil com a digitalização?

Morgan Doyle: Para responder a essa pergunta, coloco um dado que me parece muito significativo: estimamos que uma tramitação pública realizada online custe apenas 5% do que custaria se tivesse sido feita presencialmente. Ou seja, um atendimento presencial equivale a 20 realizados online, em termos de custo.

O potencial de ganho financeiro e de produtividade, portanto, é imenso. Além disso, a digitalização abre caminhos para a inovação, que por sua vez é a porta para novos serviços, novos produtos, além de novas maneiras para executar as mesmas atividades com mais eficiência e sustentabilidade. Em resumo, a digitalização é o passaporte para um país mais próspero e produtivo.

CWS Insights: Como o BID analisa o mercado brasileiro no cenário digital em comparação a outros países emergentes?

Morgan Doyle: Se me permite, o Brasil merece ser comparado não só com outros emergentes, mas com o mundo em geral. E a comparação é positiva: em 2020, a ONU colocou o Brasil no Top 20 de países com melhor oferta de serviços digitais, à frente inclusive de muitos países desenvolvidos.

Além disso, a Secretaria de Governo Digital do Governo Federal conquistou o prêmio ExcelGob Digital 2020, em uma votação conduzida por países da América Latina e Caribe. Isso para dar exemplos do setor público. No setor privado também não é diferente: o Brasil é lar do maior ecossistema de startups da região e é reconhecido como uma potência em inovação, além da já famosa adesão massiva e rápida dos brasileiros ao uso de ferramentas digitais.

Isso tudo é muito positivo, mostra o potencial da transformação digital no país e reforça a necessidade de o Brasil tirar proveito dessas fortalezas avançando em áreas como conectividade. Estimamos uma lacuna de investimentos de infraestrutura nesse setor de US$ 21,8 bilhões para que o país atinja os níveis de penetração e conectividade dos países da OCDE.

CWS Insights: E as empresas, de uma forma geral, como o BID analisa a atuação no digital?

Morgan Doyle: 85% dos entrevistados no Brasil se dizem satisfeitos com a última interação online que tiveram com serviços privados – por exemplo, pedir comida ou transporte por aplicativo. É evidente que há espaço para melhoria, mas de maneira geral, vemos população e empresas no Brasil bastante maduras quanto à transformação digital e prontas para os próximos saltos de qualidade.

CWS Insights: Diria que a transformação digital é o principal caminho para o Brasil voltar a crescer?

Morgan Doyle: O Brasil se beneficia já de uma população bastante engajada no mundo digital, um setor público que vem se estruturando para digitalizar seus serviços com bastante sucesso e um setor privado muito inovador. Ao combinar essas vantagens e avançar para suprir as lacunas que ainda há, será possível não apenas reencontrar o caminho do crescimento econômico, mas também o da inclusão social e o da sustentabilidade.